O passeio
Todos os cantos da cidade guardam os olhos da minha amada. E com eles sigo protegido contra o que não é natural. Ouço por aí a vinda do Messias e as promessas dos políticos, jamais cumpridas. E eu que não sou divino nem maravilhoso faço-me um homem sem lança e chicote. E assim sigo armado com os medos de perder os motivos pelos quais meus ossos, carnes e cartilagens vivem a passear por aí, despercebidos, pelas ruas da cidade. E isso é bom demais.
Desencanto
Sheila estava tomando chá quando viu Belmiro entrar no café. Ela acenou e ele a reconheceu. Ele sugeriu um vinho tinto para comemorar. A última vez que nos vimos foi na Adega Florence, disse ela, lembrando o dia que os italianos mudaram o bar de local; no dia seguinte, ela pegou um avião e ele ficou na saudade. Belmiro apenas pagou o vinho e sumiu pelas ruas do Taquaral.
O ipê
Acordou antes do amanhecer, acariciou a companheira e foi preparar o café da manhã. Enquanto a água fervia, se debruçou no parapeito da área de serviço e olhou para ver se o velho ipê amarelo voltara a florir – e ele não estava mais lá. Apenas um buraco no quintal e homens retirando as telhas da casa que ficava no sopé do prédio. Daí decidiu alugar uma casa e ter um jardim cultivado com as flores que jamais havia plantado na vida.
O sapato
Quando vejo um pé de sapato largado no meio-fio de uma rua qualquer, me dá um nó no gargomilo. Alguém que perde um pé de sapato e não volta para pegá-lo devia estar com o calo doendo ou foi atropelado. Eu já salvei um pé de chinelo. Deu tempo de correr atrás do lotação e entrega-lo pela janela do busão e ver uma senhora idosa me acenando, agradecida. Daquele dó escapei, mas sei que outros virão, dado que o mundo é cheio de pés e sapatos.
A agulha
Foi mais cedo para casa e seguiu direto para os fundos, atrás de um velho baú. Remexeu os guardados e sorriu levemente quando segurou um compacto simples dos Beatles. Pegou a vitrola e a levou para um canto da sala. E com um pano umedecido foi tirando o pó antigo. Da rua trouxe Bacardi, coca cola e dois limões galegos. E ficou um bom tempo cheirando-os, limpando a agulha da memória.
Zeza Amaral é jornalista, escritor e músico