Viajar para Marte, distante 60 milhões de quilômetros da Terra, é uma tarefa tão simples como andar de bicicleta ou jogar bola – “dá-se um jeito”. Difícil é encarar e solucionar as graves e cotidianas pendengas da vida. Afinal, parafraseando o velho Rosa, corre-se riscos constantes o exercitar diário do viver bem.
Com esta premissa desconcertante (por causa da aparente desconexão), o mineiro Gabriel Martins concebe um filme poderoso. “Marte Um” (Brasil, 2022, drama, 114 min.), cuja estreia mundial se deu em Sundance, o famoso festival do cinema independente, se constrói como fábula – depois de participar de programa de pegadinhas na TV, a dona-de-casa e faxineira Tércia (Rejane Faria) acha que atrai coisas ruins, – mas tem raízes bem fincadas na realidade.
O contexto político contempla a surpreendente vitória do atual presidente na eleição de 2018.
No social, ela e o marido Wellington (Carlos Francisco), porteiro em prédio de elite, representam as famílias da periferia das grandes cidades brasileira (neste caso, Belo Horizonte) onde se concentra grande número de população negra.
No plano comportamental, a filha Eunice (Camilla Damião), anuncia que não pretende se casar e ter filhos (como está escrito) e decide sair de casa para morar com a namorada (Ana Hilário), enquanto o garoto bom de bola Deivid (Cícero Lucas) esnoba o futebol e almeja ser astrofísico a fim de participar da colonização de Marte.
O roteiro escrito pelo próprio diretor permite leitura amplificada. Podemos ver o filme baseado na seguinte constatação: depois de tantos anos na Terra, o homem planeja colonizar Marte, mas se vê incapaz de resolver os problemas mais corriqueiros da vida. Quer dizer: não são banais. Mas, tampouco, insolúveis.
A dificuldade está no fato de que criamos regras e as cristalizamos. Como não sabemos lidar com o novo, sofremos e nos perdemos nos descaminhos concebidos como imutáveis por nós mesmos.
Caso da família Martins (microcosmo do mundo) na qual algumas dessas leis se perpetuam: o pai, ser humano masculino, se assume provedor e estipula o caminho dos filhos, sem respeitar a individualidade e como se ele próprio fosse infalível – nem a infalibilidade atribuída ao papa se leva a sério hoje em dia.
A duras penas, Wellington irá aprender que somos, ao mesmo tempo, heróis e frágeis – até o papa.
Esse é o pai da família que admite a própria fragilidade ante os enormes obstáculos que superou objetivando solucionar alguns dramas. Depois disso, realizar viagem a Marte, na visão dele, pode ser considerada brincadeira infantil.
Relembrar a eleição de um presidente conservador que, junto com os evangélicos, abomina, entre outras, causas gays, e explicitar paralelos entre periferia negra e ricos brancos poderia transformar o roteiro num panfleto. Gabriel foge bem dessa armadilha ao ressaltar problemas humanos narrados dentro de uma história cuja força está em si mesma; portanto, dispensa palanques e discursos.
O elenco homogêneo e harmônico facilita a confecção do filme e desperta imediata empatia.
Nos ambientes externos, a fotografia de Leonardo Feliciano valoriza a claridade natural e acompanha a forma de o diretor tratar, sem rodeios, temas espinhosos, e cria belas sequências nas tomadas internas com luz indireta – contraponto ao modo objetivo de se encenar o drama – com ênfase em belos efeitos azuis e sensíveis amarelos.
“Marte Um” nasce no cotidiano pequeno, o núcleo familiar, e se expande para tangenciar a grandiosidade do universo. Ante a essa magnificência que, por causa da exatidão da natureza concreta (matemática) dele, a ciência compreende (ou, pelo menos, tenta chegar o mais próximo possível da verdade), nós, humanos, ainda somos crianças aprendendo a andar.
Ocorre que nossos dramas se conjugam no abstrato. Na vida, somar dois mais dois pode ser qualquer outro número, menos o quatro. Talvez, quando deixarmos de ser crianças e atinjamos a evolução compreendida como adulta, viver seja um pouco mais simples e não existam tantos perigos. Tão simples como viajar para Marte.
O filme estreia nesta quinta-feira, dia 25/8, exclusivamente nos cinemas
João Nunes é jornalista e crítico de cinema