Foi divulgada recentemente a última pesquisa do Datasus (2022) trazendo dados alarmantes (sem nenhuma grande surpresa, todavia) sobre a saúde mental da população brasileira: casos de ansiedade, depressão, estresse, insônia, transtornos psicossociais e suicídios, lamentavelmente, não param de aumentar.
Não é de hoje que o Brasil figura os rankings mundiais de doenças e sofrimento mental, contrariando a caricatura do sempre alegre país – onde é carnaval o ano inteiro, expondo a face muito mais perversa e indesejável de uma nação marcada por violência, desigualdades sociais, miséria, intolerância e profunda tristeza diante das muitas crises que continuam se aprofundando na ausência de políticas públicas verdadeiramente comprometidas com a vida e o bem-estar das pessoas.
Sem dúvidas, a pandemia trazida pela Covid-19 desde 2020 vem servindo como catalizadora dos graves problemas que nos afligem, mas é preciso, também, considerar que o povo brasileiro vem dançando à beira do precipício faz tempo – de forma ainda mais inconsequente e perigosa desde que garantias sociais e direitos fundamentais começaram a ser retirados da população, sobretudo a de menor poder aquisitivo, depois do golpe parlamentar contra a ex-presidenta Dilma Rousseff.
Sob a falsa promessa de liberdade e ascensão socioeconômica por vias de uma meritocracia fantasiosa, trabalhadores e trabalhadoras têm se forçado a dedicar cada vez mais tempo, energia e recursos próprios para conseguir o mínimo necessário para sobreviver – e, claro, continuar trabalhando e perseguindo a miragem da utopia que, no horizonte, desvia o olhar do abismo bem ao lado de onde seguimos dançando inertes, anestesiados, alienados, conformados, ou simplesmente exaustos.
Com transmissão ao vivo nas redes sociais, sempre que possível, para aderir às normalidades, tendências e “life styles” fabricados por algoritmos a serviço de anunciantes e patrocinadores privados, seguimos como marionetes nas coreografias embaladas pelos mantras motivacionais de uma positividade tóxica, individualista, superficial, disfarçada por filtros, fake news e bolhas de pós-verdade que se vendem como a cura para os sintomas da doença que ela mesma causa. As telas digitais viraram o altar do fundamentalismo das aparências no século XXI, onde todo fanatismo é bem-vindo: político, econômico, estético, militar, religioso, ideológico.
Na resiliência da pessoa que, por mais massacrada que seja, “não desiste nunca”, ou na fé obstinada daquele que “crê” em dias melhores, se recrudescem percepções distorcidas sobre uma vida sustentada pela repetição de padrões e ilusões de realidades que não encontram equivalência ou correspondência com os lugares onde o corpo real – de carne-e-osso e desejos – habita: esse, onde há tantas pessoas famintas, endividadas, desabrigadas, violentadas, buscando refugio diante de guerras e abrigo da covardia dos tiranos.
Como ser feliz e cuidar da saúde mental nessa dança sinistra à beira do precipício?
Encarar o abismo e, como dizia Nietzsche, ser por ele encarado de volta, exige coragem e motivações sobre-humanas para não se deixar seduzir pela escuridão que acaba com todo sofrimento. Para o otimista, aproveitar a queda antes do chão pode ser uma experiência de aprimoramento pessoal e profissional – mais um diferencial no currículo, quem sabe, antes do fatídico reencontro com a realidade sólida como chão rochoso, ou, pior, com o vazio abismal de si mesmo.
Numa sociedade condicionada a viver à beira, lucrando com o espetáculo e produzindo engajamento com atrocidades, flertar com o caos possui o mesmo efeito entorpecente de drogas que nos fazem oscilar entre euforia, letargia, satisfação, prazer e completa dissociação da realidade. Como em qualquer vício, cada vez mais é necessário para conseguir cada vez menos. Nosso tempo se esgota, nossa energia se exaure, qualquer sentido se perde.
E por que, ao invés de alimentar o vício na imanência da crise, não abrir caminhos diferentes, que nos levem pra longe do precipício, onde a genuína busca pela felicidade nos reconecte com a humanidade de que todas as pessoas deveriam partilhar?
Ao invés de corações comprimidos e comprimidos para enganar corações, por que não construir lugares de generosidade, coletividade, cooperação, solidariedade e equilíbrio com o planeta como alternativa a sustentar com a própria vida, tantas vezes, a lógica predatória de competição, exploração e ostentação da música que nos obrigamos a dançar?
De costas para o precipício, melhor se deixar levar pela próxima música, que logo vem para preencher o incômodo vazio existencial que o tempo todo buscamos, em vão, silenciar.
Luis Felipe Valle é professor universitário, geógrafo e mestre em linguagens, mídia e arte.