Não parece, porque é difícil avaliar o presente, mas o dia de hoje é melhor que o de ontem. Assim, como os tempos atuais são mais humanos que Idade Média – também chamada de Trevas. Nem precisa ir tão longe. Lembremos de como eram tratados os (as) obesos (as) e os gays, 40 anos atrás, sob ótica de dois filmes distintos no gênero, na abordagem e nos propósitos e façamos conexões com os caminhos que trilham.
O homem se importa pouco quando chamado de “gordo”, mas, se alguém quiser ofender uma mulher, use o adjetivo no feminino. Este é um dos temas de “Uma Pitada de Sorte” (Brasil, 2022, comédia romântica, 93 min.), de Pedro Antônio.
O que se esperaria de um filme com Fabiana Karla como protagonista? Que seja comédia e que o tipo físico da atriz renda inúmeras piadas. Mas o filme surpreende ao se apresentar como comédia romântica. E o tema da obesidade é tratada sem subterfúgios.
O roteiro do diretor (com Regiana Antonini e Álvaro Campos) propõe algo simples. Segue preceitos estabelecidos na construção da narrativa e abre possibilidades para que preconceitos sejam quebrados.
A atriz vive Pérola, animadora de festas, protótipo do artista disposto a fazer qualquer coisa para mostrar talento, como enfrentar ônibus lotados carregando estranhas fantasias. Um encontro fortuito a levará para a TV auxiliar chef em programa de gastronomia.
De posse do estereótipo de mulher obesa, engraçada e sem medo do ridículo, ela topa tudo para realizar o sonho de ter restaurante próprio – as festas infantis e o programa servem de trampolim.
Terá até programa próprio, mas nunca passará de alguém se submetendo aos caprichos de produtores em busca de audiência. No pacote, assédio de quem está por cima e rejeição pelo fato de o corpo dela não atender aos princípios da ditadura dos magros.
O filme não tem outra pretensão que não seja divertir – e não há mal nisso. Mas torna-se relevante o esforço da produção em usar a diversão para mexer com preconceitos.
Não importa que a personagem seja ingênua, ligada às raízes sociais, que dispensa o sujeito rico e se apaixona pelo motorista Lugão (Mouhamed Harfouch) e que esteja sintonizada com a ética – não usa de quaisquer meios para alcançar metas.
Pérola encarna a mulher de hoje (contraponto das que representaram nossas mães donas-de-casa), que tem propósitos próprios e sonhos pessoais – demonstração que, mesmo a duras penas, evoluímos como seres humanos.
“Os Primeiros Soldados”
Em passado recente (ainda persiste em alguns segmentos), a palavra “viado” também ofendia. Hoje, pode ser rebatida pelo vocábulo orgulho – nem tão adequado assim, mas forte o suficiente para contrapor-se ao poder do estigma da expressão que remete ao bicho elegante, bonito e dócil.
Em “Os Primeiros Soldados” (Brasil, 2021, drama, 107 min.), a ofensa é o de menos, pois no roteiro escrito e dirigido por Rodrigo de Oliveira, trata-se de seguir vivo. É questão de vida e morte, como demonstra um momento iluminado e outro revelador – ambos impactantes.
No primeiro, em meio às assustadoras notícias da peste que mata gays, a transexual Rose (Renata Carvalho, bem no papel) canta no Réveillon de 1983 a música do Gonzaguinha, no qual o compositor fala da impossibilidade: “não dá pra ser feliz”. Ela para o show e muda a letra para verso de duplo sentido e menos irreverente do que parece, porque surge como grito de desespero: “vai dar pra ser feliz”.
No outro, tempos depois, na danceteria Genet (referência ao dramaturgo francês, gay, Jean, 1910-1986), o biólogo Suzano (o ótimo Johnny Massaro) realiza cena que funciona como alerta. Os rapazes bailam, como se não houvesse amanhã, ao som de “Linda Juventude” (14 Bis), quando Suzano invade o baile e executa macabra performance.
Todos os significados trágicos que embutem a situação em que se está marcado para morrer se erguem contra geração de jovens para a qual sexo livre, leve e prazeroso era palavra de ordem. Agora, ela será quase aniquilada em todo mundo, pois nova palavra de ordem estipula que o tal sexo libertário carrega a morte no ventre.
Rose, Suzano e Umberto (Vitor Camilo) erguerão refúgio, suposto porto seguro onde haverá resistência e testarão remédios dos mais diversos matizes vindos da França. Acreditava-se, na época (talvez nunca saibamos a verdade), que a Aids tinha sido criada em laboratório a fim de exterminar gays.
Por isso, sensibiliza tanto a cena em que Rose expõe parte do corpo ante a câmera do videomarker Humberto, que realiza filme no qual a narrativa se encerra, e diz trágica, mas esperançosa frase: “Vocês nunca vão acabar com isto”. A tragédia permeia este triste e incômodo filme, mas a esperança dá a carta final.
Sim, o segmento LGBTQIA+ continua a sofrer preconceitos, servido em bandeja nas piadas de mau gosto e mortos. Mas o mundo melhorou desde então. Realizar, exibir e debater um filme como “Os Primeiros Soldados” atesta esta constatação.
João Nunes é jornalista e crítico de cinema
“Uma Pitada de Sorte” estreia nos cinemas na quinta-feira, dia 15/9.
“Os Primeiros Soldados” acaba de estrear nas plataformas de streaming Claro TV+, Vivo Play, Oi Play, Apple TV, iTunes, Google Play e Movies