Por favor, não arranque a esperança que muito custou para os meus pais plantarem no meu peito. Foram muitos anos de ensinar os filhos a ter respeito para com as coisas certas que o padre da missa dos domingos dizia e pedia amém.
Não arranque do meu peito as mãos quentes da minha avó, do seu colo macio, dos carinhos que ela fazia nos meus cabelos. E quanto carinho tive da mão da professora Aparecida, lá na escola Professor João Lourenço Rodrigues, guiando meus dedos para desenhar as primeiras palavras. Não arranca de mim o aroma do perfume que ela esparramava pela sala de aula, do som da sua fala, explicando a cartilha das primeiras palavras.
Não arranque de mim o que aprendi com as palavras do meu primeiro livro, As Caçadas de Pedrinho, do soberano Monteiro Lobato. Não arranque de mim as aventuras que sonhei na minha infância.
Não arranque de mim o som da Maria Fumaça passando raspando pelos muros da minha casa, cantando para as moças nas janelas, avisando que a vida também estava bem além dos trilhos, muito mais longe do que o bairro do Taquaral pensava.
Por favor, não arranque de mim o som do bonde 4, Taquaral, rangendo na ladeira da Rua Paula Bueno e, depois, seguindo tranquilo até o ponto final, para descansar as almas que vinham do centro da cidade. E o sino da Igreja Nossa Senhora de Fátima martelava as horas santas – e o ferreiro Zezinho fazia cantiga com a araponga na viola da bigorna. O bonde descansava e partia com o motorneiro pisando no gonzo de bronze da triste condução que nunca saia dos trilhos da sua sina de levar as gentes para seus destinos. E até hoje carrego um bonde dentro da minha cachola, adormecida, se balançando no rodar de ferros das rodas, trepidando nas emendas dos trilhos, gemendo ao peso de tantos sonhos que por si passavam.
Não arranque de mim o que nem a morte de amigos foi capaz; e todos eles ainda estão dentro da minha amizade, que foi sincera e leal. Pois é. Sou do tempo da sinceridade e lealdade. E também da palavra justa a quem bem merecia. Não por prazer de vingança, mas por ser sincero e leal ao que era justo e natural. Por favor, não arranque de mim a sinceridade e lealdade que devo a mim mesmo.
Tenho vida simples de quem tem uma amada companheira, vasos de flores e um passarinho. Também tenho um violão de cordas velhas e uma simpática caixa cheia de remédios para os males da minha idade. E tenho também uma pasta com velhas letras de música e alguns livros que ainda não li – cujas palavras podem continuar virgens e imaculadas pelas minhas retinas cansadas, ou preguiçosas – devo dizer.
Não arranque a quietude da minha companheira. Ela está costurando uma fronha e, agora mesmo, desenhou singelos bordados. Eu escrevo e ela vai alinhavando seus belos panos. Por favor, e digo mais uma vez, não arranque um momento de paz que levei décadas de palavras e canções para conquistar.
Nada sei da sua vida, senhor presidente, e não vou assuntar o que os seus pais e avós lhe ensinaram. Mas não arranque de mim as surras de cinta e chinelo que levei da mãe e do meu pai – mesmo porque com isso aprendi a não apanhar da vida.
Se o senhor levou a vida sem pensar no seu vizinho, é problema seu – ou de algum doutor em cachola. Mas não arranque de mim a saudade da família Reolon, do saudoso Paulo e do seu mano Eduardo.
O senhor não sabe nada da minha vida – assim como não sei da sua. Por favor, senhor presidente, não arranque a emoção que sinto quando ouço o hino brasileiro; não me faça acreditar em uma bandeira sem cores para não descorar. Chame os seus militantes e os convoque para pegar Covid-19 nas suas aglomerações. Mas não arranque de mim o luto que carrego pelos quase meio milhão de brasileiros mortos pela sua barbárie eleitoral.
A minha indignação é uma erva daninha que o senhor plantou na minha existência. Será que o senhor é capaz de arrancá-la? Agradeço.
Zeza Amaral é jornalista, escritor e músico