Numa das páginas criadas nas redes sociais para arrecadar fundos destinados à sua recuperação, aparece um verbo intrigante, mas ao mesmo tempo revelador: lilar. “Enxergar a vida de maneira singular, como se ela fosse uma crônica fotográfica. Permitir-se, sem medo, do que há por vir; agir de forma espontânea, criativa e alegre. Quebrar regras, criar de forma única e original”. Na prática, no dicionário, o verbo transitivo não está registrado, mas terá de sê-lo. Senão por obra de um linguista, profissional das letras, mas por força da própria lei da vida, que impõe situações para as quais não estamos preparados. A morte de Lilo, o fotógrafo Maurilo Clareto, é uma delas, mais uma vítima da Covid-19, doença que abriu as portas de comportamentos repugnantes, como o negacionismo, mas que também gerou uma corrente de solidariedade em escala global, uma onda de acolhimento para as dores do corpo e da alma. Lilo foi vencido nesta quarta-feira (21) após uma intensa luta contra o vírus.
“Com muita tristeza comunico o falecimento do nosso querido Lilão! Ele lutou muito, mas infelizmente não resistiu a essa maldita doença”, afirmou o jornalista Cid Luís de Oliveira Pinto, diretor da Alfapress Comunicação e cunhado do fotógrafo, em mensagem enviada a amigos e parceiros.
O drama do fotógrafo começou em Altamira, no Pará, onde morava com a família. Ele chegou a ser internado e intubado numa unidade pública, mas na madrugada de 22 de março foi transferido para o Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo. Foi aí que começou uma grande campanha no País de arrecadação de fundos para bancar a recuperação de Lilo. Em páginas na internet criadas com esse propósito e em centenas de reportagens em jornais e portais, como o próprio Hora Campinas, o drama de Lilo foi narrado, situação que mobilizou intenso engajamento dos leitores e imediata resposta na contribuição financeira. Os fundos foram destinados a pagar gastos com médicos, remédios, transporte e hospital.
“Lilar é enxergar a vida de maneira singular, como se ela fosse uma crônica fotográfica. Permitir-se, sem medo, do que há por vir; agir de forma espontânea, criativa e alegre. Quebrar regras, criar de forma única e original”.
Referência no fotojornalismo brasileiro, com passagens por Campinas no extinto jornal Diário do Povo, onde começou a carreira, Lilo foi por 11 anos também repórter fotográfico de O Estado de S. Paulo e por sete anos trabalhou na revista Época. Era singular, lembram seus colegas de ofício. Era especial, complementam amigos e parentes. Era genial, reconhecem os amantes da fotografia. “Lilo Clareto possivelmente se contaminou ao documentar o ecocídio e a crise humanitária provocadas por Belo Monte na Volta Grande do Xingu, na Amazônia”, escreveu Eliane Brum, uma das mais premiadas e prestigiadas profissionais do jornalismo brasileiro. Lilo era casado e tinha quatro filhos: Beatriz, Fran, Gabriela e a pequena e doce Maria, de 2 anos.
Em depoimento ao Hora Campinas, em março, quando o fotógrafo iniciava a sua batalha contra a doença, a jornalista Marilucia Caramalac, sua amiga há 38 anos, definiu a marca profissional de Lilo. “Ele tem o que chamamos de olhos da alma, ele enxerga além da imagem. O seu click gera mais que uma fotografia, gera uma, dor, uma alegria, uma emoção. Seu trabalho fala por si só, é intenso, causa os mais variados sentimentos, mas nunca a indiferença”.
Para a jornalista Eliane Brum, companheira de trabalho por mais de duas décadas do fotógrafo e responsável por iniciar o movimento Respira Lilo, a causa direta da morte foi Covid-19, “mas não foi o vírus que matou Lilo. Foi quem disseminou o vírus no Brasil, quem chamou a Covid de gripezinha, quem recusou vacinas, quem produziu aglomerações, quem agiu contra o uso de máscaras, quem praticou crime de extermínio contra centenas de milhares de brasileiros”.
Em postagem nas redes sociais, amigos e parentes de Lilo confirmaram de forma poética e terna a despedida. “Lilo mandou dizer que respira. Mas não precisa mais de ar. Saiu da UTI para habitar um lugar ao qual não temos mais acesso. Lilo se foi… Nós, amigos, familiares e, porque não dizer, fãs… Ainda estamos processando essa nova realidade. Não é o fim. É uma pausa. A obra de Lilo continuará viva pra sempre! E que privilégio poder passar pela vida e de fato deixar um legado. A internação e luta do Lilo reuniram muita gente, geraram repercussão, arrecadaram recursos, incendiaram ideias… Lilo virou substantivo, verbo, adjetivo. Isso tudo irá continuar. A luta do Lilo pela vida ainda é a de tantas pessoas, mas a luta do Lilo em vida vai muito além de ar. Suas imagens serão o combustível para algo maior e perene, mas agora ainda não conseguimos falar sobre isso. Vamos recuperar o fôlego, sentir a perda e voltaremos em breve pra contar. Obrigado a todos pela força!!