Depois da tempestade, sempre vem… outra tempestade. Contrariando o ditado popular, os últimos anos têm sido, para muitas pessoas, uma trágica e desgastante sequência de crises que parecem se emendar umas às outras. Crises políticas, crises sanitárias, incluindo uma pandemia, crises econômicas, desemprego, inflação, dívidas, guerras… A simples menção desse cenário conturbado já é sufocante e nos faz querer direcionar a atenção para as tarefas rotineiras (sempre urgentes) ou então às distrações do mundo virtual (tão urgentes quanto, talvez?).
O que poderia ser uma estratégia para conseguir lidar com a pressão do dia a dia e concentrar esforços para resolver aquilo que está ao nosso alcance ou buscar um momento de espairecimento, no entanto, revela-se cada vez mais um castelo de cartas concebido com a finalidade de nos manter prisioneiros desse cenário de crise permanente. Emaranhados na realidade caótica insistentemente reproduzida pelas telas conectadas à internet, somos condicionados a obedecer padrões e seguir tendências vendidas como “liberdade” ou “individualidade” e, ao mesmo tempo, rejeitar reflexões mais profundas que poderiam levar à interrupção das crises continuamente fabricadas em diferentes escalas e níveis de interferência em nossas vidas.
O ataque da Rússia à Ucrânia, o “humor” do Mercado, a variante do coronavírus, o atentado terrorista, mais tantos casos de feminicídio, racismo e homofobia, os preços do pão, do leite e da hora trabalhada, o casamento daquela celebridade, o cancelamento de uma outra, a ansiedade por querer a vida daquele famoso, a depressão em não conseguir, o desgaste insano de continuar tentando. Isso sem falar das fake news e da zumbificação moral e intelectual de quem vive em realidades paralelas misturando forças armadas, bilionários excêntricos, clones presidenciais, nanotecnologia, alienígenas anticomunistas e algum tipo de seita religiosa fundada por ódio, mentiras e, claro, tantas crises quanto se possa imaginar.
É evidente que existem crises estruturais persistentes, resultantes das desigualdades socioeconômicas produzidas pelo materialismo histórico, intrinsecamente ligadas à escravidão, à miséria e à perseguição de grupos marginalizados. Quem passa fome vive em crise. Para quem vive sem abrigo, a sobrevivência é, em si, uma crise. Para quem vive forçado a se esconder ou negar seu corpo, sua essência, sua expressão, também.
Mas é de se estranhar que a generalização do estado de permacrise tenha se globalizado com tanta eficiência e sem muita resistência, catalisada pela hiper-exposição de pessoas à deriva no ciberespaço, prisioneiras quase voluntárias da busca incessante e insaciável por uma felicidade intangível que, ao invés de trazer satisfação e realização, estimula um sentimento de alarmismo, angústia e impotência diante dos vazios arquitetados por algoritmos que não foram feitos para resolver crise alguma, mas, sim, para prender nossa atenção, coletar informações e sequestrar nosso tempo diante de várias outras que continuam (re)produzindo.
Ainda incapazes de moderar nossa permeabilidade racional, afetiva e emocional contra o bombardeio de informações e estímulos a que somos intensamente expostos, temos aceitado com certa ingenuidade, letargia e conivência a tragédia de viver entre crises, como se o sofrimento permanente trouxesse alguma resiliência heroica, sofisticação ou mais realismo às simulações dramáticas em que nossas vidas têm sido convertidas.
O equívoco elementar de se enxergar mero expectador da própria vida ou, de maneira oposta, protagonista egocêntrico de uma realidade complexa e coletivamente construída é que, ao contrário de criar rupturas significativas e sustentáveis para superar circunstâncias produtoras de sofrimento, somos levados a reciclar estruturas conservadoras e predatórias fundadas na exploração das desigualdades e no uso das crises para legitimar autoritarismos, violências e injustiças, naturalizando a infelicidade como condição da existência humana.
Crise para uns, oportunidade para outros – dirá um dos mantras mais cruéis da normalidade neoliberal. É preciso saber quem está pagando com a vida e quem está realmente desfrutando da vida nesse aparente purgatório na Terra. Antes tarde do que nunca, as revoluções precisam suceder até mesmo as maiores e mais duradouras crises.
Luis Felipe Valle é professor universitário, geógrafo e mestre em linguagens, mídia e arte.