Impressionante como Mahnaz Mohammadi, diretora de Filho-Mãe (Pesar-Madar Irã/República Tcheca, 102 min. 2010), consegue obter poesia em filme permeado de dor e sofriento. Este é o primeiro elogio ao trabalho desta mulher – uma incômoda raridade – que faz cinema no Irã. E realiza com extrema competência, sensibilidade, consciente de onde deseja chegar ao conceber um drama com características de suspense.
O ritmo imposto por Mahnaz Mohammadi lembra o thriller porque está recheado de acontecimentos que provocam tensões, atropelos e constantes mudanças de rumo na história. Ao mesmo tempo, a diretora não perde de vista que está narrando um drama com todos os ingredientes próprios do gênero – que, em última análise, define o filme.
A poética da narrativa se estabelece a partir das esvoaçantes vestes negras da protagonista Leila (Raha Khodayari). Na sociedade instituída para homens, o traje que, supostamente, simboliza respeito escancara a opressão e revela o quanto o poder da ancestral culpa presente na tradicionalista e mesquinha sociedade islâmica iraniana pesa sobre os ombros das mulheres.
Não se trata de crítica à fé, mas ao machismo e à submissão feminina presentes nas religiões.
Neste caso, o islamismo; porém, evangélicos conservadores do Brasil também exigem das mulheres, por idênticos motivos, desnecessários cabelos e vestidos longos.
O fato de a direção estar entregue a uma mulher faz a diferença. A sensibilidade de compreender a força do simbolismo dessa roupa impregnada na cultura iraniana dentro do complexo e misterioso sistema social do país permite a Mahnaz Mohammadi encontrar o fio poético.
Circulando nas ruas da grande cidade, correndo para tomar ônibus, levando a filha doente para o hospital, Leila está permanentemente coberta pela vestimenta – apenas mãos e rosto ficam à mostra.
A imagem, que esconde o corpo tenso e dividido da sofrida mãe, paradoxalmente, explicita o momento mais bonito do filme: as esvoaçantes roupas pretas em meio à neve parecerão vestir um anjo e comporão preciso contraponto.
No confronto entre as cores extremas, o signo de opressão é o mesmo que desvela a beleza.
Leila é mãe solteira e trabalha duro em uma fábrica para sustentar os dois filhos: uma menina de colo e o garoto Amir (Mahan Nasiri), que tem por volta de 12 anos. Prestes a ser demitida, encontra possível saída para o drama, na proposta de casamento feita por Kazem (Reza Behboodi), motorista terceirizado do ônibus que transporta trabalhadores da fábrica.
Um casamento àquelas alturas e, claro, naquele contexto, cairia muito bem à Leila, mas ele embute inescapável exigência: Amir não poderá acompanhá-la, pois o motorista tem uma filha na idade do menino e não convém que morem juntos, pois seria motivo de fofoca e poderia inviabilizar futuro casamento da menina.
Quem estabelece insistente ponte entre o futuro casal é a alcoviteira Bibi (Maryam Boubani). Ela tem interesse em que o menino seja internado em escola de deficientes físicos, pois ganhará parte da mensalidade paga pela mãe do garoto. Um dos bizarros argumentos usados por ela para convencer Leila a se casar. “Você ainda é bonita, daqui dois anos ninguém olhará na sua cara”.
A dúvida de Leila (e o sofrimento dela) e a dor de Amir, por separar-se dela, fazem de Filho-Mãe um filme de cortar o coração do mais sensível espectador. O olhar desconfiado do garoto ao saber que Bibi trama essa separação e o olhar perdido depois que a separação se consuma, provoca um sentimento de raiva ante a um sistema tão determinista que parece feito com o objetivo de ver as pessoas sofrerem.
Ao mesmo tempo, desperta-nos ternura pelo garoto desamparado e solidariedade à mãe obrigada a fazer tão dolorosa escolha. Torcemos pelo fim do drama de Leila e queremos Amir junto da única pessoa confiável e a quem ama que ele possui. E se não há um mocinho e uma mocinha, certamente, existe uma vilã, Bibi. A ela não interessa o sofrimento da mãe nem do filho, mas os dividendos financeiros.
Um conflito e tanto colocado nas mãos de Leila. O filme triste e doloroso, no entanto, está posto nas mãos da diretora que soube dosar a dor e usar a poética como bálsamo. No belíssimo plano final, ainda vemos o olhar perdido de Amir, mas é também um olhar de esperança.
O filme entrou em cartaz em várias cidades do País, mas não chegou a Campinas; em breve nas plataformas digitais.
João Nunes é jornalista e crítico de cinema