Sinto saudade de algumas coisas que não vivi. Andar de caravela e descobrir novas terras, por exemplo. Ou passar uma madrugada ao lado de Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Noel Rosa, Nelson Cavaquinho e Cartola. Nasci um pouco tarde demais, é fato, mas mesmo assim tenho saudade de todos eles.
Todos eles se foram e deixaram este escriba cheio de saudade. E é assim que venho tocando a tosca vida de sempre, embora honrado pelo carinho de uma moça que me faz um bem danado de bom.
E é ela que me lembra que o dia 25 de abril é quando os portugueses comemoram a Revolução dos Cravos.
Naquela quinta-feira, 25 de abril de 1974, já era madrugada alta na Adega Florence, reduto de universitários bêbados, desocupados, musas, poetas, gente de teatro, jornalistas e seresteiros. O boteco dos italianos tinha uma sala nos fundos, batizada de Sala Cecília Meirelles. Sempre na penumbra, com uns quadros de urubus enfeitando a parede, tinha oito mesas confortáveis e profissionais. Na madrugada, era quase impossível achar um canto de parede para se encostar. Era ali que boêmios e boêmias solitários passavam a limpo suas emoções.
Tempo de ditadura, de paredes com ouvidos.
A madrugada daquela quinta-feira corria como tantas outras, preocupada e bêbada, e o também saudoso Jura (o barman do pedaço) sempre prometendo tacar fogo na casa dele (promessa que cumpriria anos depois).
De repente, Henrique, um jovem estudante português, entrou na sala e começou a cantar uma canção portuguesa, com a voz empostada e braços alcançando o teto. Mandaram-no calar a boca e eu, por estar mais próximo dele, e o mais amigo, peguei-o pelo braço e ambos saímos capengando para o salão principal da adega. E ele cantava e cantava, saía à rua e voltava cantando e cantando. E bebia e bebia. E tornava a cantar a mesma música.
A madrugada já estava ficando com seu prazo de validade vencido quando saí para respirar um pouco daquele ar que amanhecia em mais uma manhã brasileira. Henrique, cansado, estava emborcado numa mesa da varanda mas, mesmo assim, cantava, agora baixinho.
Naquela madrugada, bêbado e divinamente feliz, ele me contou, quase em segredo, porque estava cantando aquela música. Horas antes, um parente lhe havia telefonado de Lisboa, contando que o povo português estava nas ruas, cantando e bebendo ao lado de soldados revoltosos e lhes oferecendo cravos vermelhos.
O então primeiro ministro português Marcello Caetano – herdeiro político do ditador Salazar – acabara de ser deposto. Era o fim da dinastia salazarista, uma das mais infames ditaduras da Europa. E assim saímos pra rua a comemorar. E assim aprendi a cantar: Grândola, Vila Morena/ terra da fraternidade/ O povo é quem mais ordena/ Dentro de ti, óh cidade…
Naquele fim de madrugada, ao lado de um jovem e feliz amigo português compreendi o real sentido da palavra liberdade. E hoje, neste 25 de abril, todas as saudades vieram me visitar. Bom dia.
Zeza Amaral é jornalista, escritor e músico