Kompromat, a palavra e título original do longa “Kompromat – O Dossiê Russo” (França, suspense, 2022, 127 min.), do cineasta e roteirista francês Jerôme Salle, e livremente baseado em história real, significa documento produzido pelo serviço secreto russo com o objetivo de destruir reputações. No caso do filme, as razões não são apenas arbitrárias e cruéis, mas manifestações ferozes de uma política conservadora que anda fazendo carreira vitoriosa pelo mundo – como aconteceu nesta semana com a eleição da nova primeira-ministra da Itália, Giorgia Meloni, autodenominada fascista.
Ela assinaria embaixo a perseguição a Mathieu Rousel (Gilles Lellouche), novo diretor da Aliança Francesa, em Moscou, efetuada pelo Serviço Federal de Segurança da Rússia (FSB) – herdeira da antiga KGB, a poderosa e temida polícia secreta da ex-União Soviética.
Afinal, ela, assim como estados iguais a Rússia, defende um punhado de pensamentos retrógrados que costuma sobreviver em regimes ditatoriais, como, por exemplo, assumir ou ser simpático à homossexualidade.
O “pecado” de Mathieu foi inaugurar sala de teatro na sede da escola francesa de idiomas e levar, de Paris, um espetáculo de dança no qual dois homens vivem experiência amorosa. Para piorar, na festa de recepção aos convidados do espetáculo, ele dança com a nora de Mikhail Gorevoy (Michael Rostov) ex-agente da tal KGB.
A consequência não poderia ser mais violenta. Ele é preso dentro de casa, sob acusação de pedofilia e, para “provar” a referida prática, produz-se extenso documento falso, tão fake que não sobreviveria a uma perícia decente. Mas quem está preocupado com perícia em um estado de terror?
O dossiê, palavra que aparece no título brasileiro do filme, desmonta a vida de Mathieu. Ele é preso, torturado, a mulher se encarrega de fazer a acusação formal, antes de voltar com a filha para a França, a embaixada lava as mãos, o advogado contratado mantém sintonia com a FSB e, à revelia e sem possibilidades de defesa, se vê condenado a 15 anos de trabalhos forçados. Um exemplo de democracia, como se vê.
Mesmo não sendo protagonista, Svetiana (Joanna Kulig), moça que dançou com o francês na festa (encontro que resulta em relação afetuosa) e lhe serve de tábua de salvação, se destaca como a personagem mais instigante da trama por se equilibrar o tempo todo em terreno movediço.
Todos os homens que a cercam mantém dependência dela: Mathieu, a quem ela ajuda, o marido Sacha (Daniil Vorobyov), veterano de guerra impedido de andar e fruto de casamento sem afeto, o sogro emocionalmente preso a ela por causa do filho e o misógino Sagarine (Igor Jijikine) poderoso homem da FSB, que a humilha, mas a teme, pois ela detém informações a respeito dele.
Além da boa condução impressa ao suspense pela direção, há um elemento predominante no bom roteiro do próprio diretor e de Caryl Ferey: por que regimes defensores de políticas cerceadoras da liberdade gostam tanto de exaltar Deus, família, sentimentos nacionalistas e comportamentos moralistas, mas se escondem na obscuridade, usam artimanhas inaceitáveis e odeiam quem gosta do arejamento, tem posturas libertárias e busca claridade em vez da hipocrisia?
Este é o cerne do filme que, neste caso, se passa na Rússia. Poderia ser no Brasil. Ou na Itália, na Coreia do Norte, na China.
Deus, o princípio primordial citado por muitos desses supostos poderosos, não tem pacto com a escuridão – característica que a cinematografia de Matias Boucard e Sacha Wiernik evoca de forma primorosa e a trilha de Guillaume Roussel completa, também, de modo eficiente e criativa.
Deus é luz, família deveria ser o espaço do afeto e, nação, o lugar da liberdade de pensamento e das ações. Sem esses elementos não existe vida possível. Coibir tais manifestações, por si só, é inaceitável. Fazê-lo com violência e ódio, definitivamente, nada tem a ver com Deus. Nem com a claridade.
O filme estreou na última quinta-feira, dia 29, nos cinemas. Em Campinas, pode ser visto no Cinemark do Shopping Iguatemi
João Nunes é jornalista e critico de cinema