Quando, finalmente, graças à ampliação das campanhas de vacinação pelo mundo todo, 2022 começava a se mostrar um ano promissor para a superação das crises trazidas pela Covid-19, vemos manchetes noticiando o cenário devastador produzido pela invasão de tropas russas ao país vizinho, a Ucrânia. O epicentro de uma disputa global por poder pode ressuscitar pesadelos da Guerra Fria, como o uso de armas termonucleares. Considerando a complexidade do tema, algumas reflexões precisam romper a falsa lógica dicotômica e maniqueísta da guerra, que vai muito além de uma luta moral entre o bem e o mal.
É preciso, antes de tudo, lembrar que Rússia e Ucrânia lideraram o bloco soviético criado após a Revolução Russa, que aconteceu entre 1917 e 1922, e colocou fim ao czarismo do Império Russo, sob a promessa de uma construção democrática protagonizada pela classe trabalhadora e pelo campesinato. Lamentavelmente, pouco tempo depois da Revolução, a militarização promovida por Stalin tornou frequentes a perseguição a opositores políticos e o massacre de quem quer que se levantasse contra o Exército Vermelho – inclusive grupos comunistas, anarquistas e de resistência antistalinista na Ucrânia.
Entre 1931 e 1933, o Holodomor representou um dos mais cruéis atentados contra a humanidade, quando a grande fome provocada pelo stalinismo vitimou mais de cinco milhões de ucranianos na então URSS.
O sentimento de traição e revolta contra a liderança de Stalin foi tão grande que o nazismo foi recebido por muitos ucranianos como uma alternativa viável ao socialismo-soviético, dando força às investidas de Hitler contra a Rússia.
Embora as tropas nazistas tenham sido derrotadas pelo Exército Vermelho, em 1945, a polarização entre “anticomunistas” e “antinazistas” mantém-se viva no Leste Europeu – área que tanto a Rússia quanto os EUA (através da Otan) buscam influenciar e controlar, por ser rica em combustíveis fósseis, solos férteis e estar estrategicamente localizada no contato entre Europa e Ásia.
Décadas depois, já no século XXI, frente ao descontentamento popular com as crises de desemprego, inflação e endividamento na Europa, a Ucrânia teve um governo legitimamente eleito atacado e derrubado em 2014, com presença expressiva de grupos ultranacionalistas, xenofóbicos, supremacistas (inclusive o batalhão Azov, neonazista) e milícias armadas somando-se à população insatisfeita com o governo de Víktor Yanukóvytch, sob o argumento de “combater o comunismo” e “lutar pela liberdade”.
O golpe lembra, em muitos aspectos, as mesmas circunstâncias que deram origem ao ataque de mercenários em Cuba, na invasão à Baía dos Porcos (1961); os golpes militares da Operação Condor (1975-1983), na América do Sul; e à formação de grupos fundamentalistas que surgiram de disputas entre EUA e URSS/Rússia, como o Talibã, produto da guerra afegã-soviética (1979-1989), o Estado Islâmico, que ganhou forças ao tentar derrubar Al-Assad (apoiado pela Rússia) na Síria, e tantas guerrilhas em países africanos invadidos e arrasados por tropas estrangeiras, sempre com a justificativa de que o intervencionismo é necessário para alcançar paz e democracia.
Vladimir Putin, apesar de eleito presidente, há muito tempo rompeu com um governo verdadeiramente democrático na Rússia.
Atualmente, se mantém no poder graças ao apoio de oligarcas russos – políticos influentes e empresários bilionários que controlam setores estratégicos em escala local e global, com o uso da força militar sempre que necessário.
Da mesma forma que existem oligarcas ultraconservadores alimentando o imperialismo russo, existem, também, oligarcas neoliberais no Ocidente, como Elon Musk, e populistas da direita neofascista, como Steve Bannon, abrindo trincheiras de uma guerra híbrida que coloca as megaempresas das telecomunicações e armas digitais numa ciberguerra que pode atacar e destruir governos legítimos manipulando a opinião pública e provocando instabilidade econômica a partir de especulações, como foi o golpe contra Dilma Rousseff, em 2016, e contra Evo Morales, na Bolívia, em 2019.
Nada nessa guerra é tão simples ou transparente como alguns dizem ser. Duro revés na trajetória da humanidade que, diriam alguns, estaria mais sensibilizada e disposta à cooperação depois de mais de seis milhões de vítimas fatais em dois anos de pandemia.
Luis Felipe Valle é professor universitário, geógrafo e mestre em linguagens, mídia e artes